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COLETÂNEA DOS ARTISTAS GAÚCHOS: BERNARDETE CONTE

Confira a entrevista que fizemos com a artista participante da Coletânea sobre sua obra e a participação no projeto.
14/02/2023

Por meio do Espaço Multicultural Livros sobre Trilhos – a biblioteca do metrô –, a Trensurb está promovendo a Coletânea dos Artistas Gaúchos, projeto cultural que busca destacar a produção dos artistas visuais do estado, dando visibilidade ao seu trabalho para um público que não tem o hábito de frequentar os espaços tradicionais de exposição de arte. Os perfis nas redes sociais da Trensurb e do Espaço Multicultural divulgam, mensalmente, três obras de cada um dos 14 artistas participantes da Coletânea. As obras também são veiculadas nos monitores do Canal Você (presentes em trens e estações), que apoia o projeto. A curadoria da Coletânea é do poeta e assessor da Trensurb, Élvio Vargas, da artista multimídia Liana Timm e da professora Dione Detanico.

Neste mês, a Coletânea destaca a série No fio dos sonhos, da artista Bernardete Conte, produzida em 2020, com pintura acrílica, transferências de fotos e colagens. Natural de Caxias do Sul, Bernardete cursou licenciatura em Desenho e Plástica, no Instituto de Artes da UFRGS, e é mestre em Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, Portugal. Além de artista plástica, ela também é psicóloga e psicanalista. Durante sua trajetória artística, participou de mais de quarenta exposições coletivas, dez individuais e foi selecionada em nove Salões de Arte de Portugal, Luxemburgo e Brasil, tendo recebido três prêmios: um em desenho, outro em joalheria, e um em instalações.

Confira a seguir a entrevista que realizamos com ela a respeito da participação no projeto e sua obra.

Desde quando tu produzes arte? Como foi tua trajetória?
Bernardete Conte – Comecei minha formação acadêmica, nos anos 70, dentro do Instituto de Artes. Embora, desde minha adolescência, eu fazia desenhos, pintava, tendo feito diversos cursos.  Não concluí a faculdade de Belas Artes. No último ano da mesma, eu me transferi para a Psicologia. E depois fiz 12 anos de formação em Psicanálise. Mas nunca abandonei a Arte. Ela não teve minha dedicação exclusiva por longo tempo. Trabalhei muitos anos com esculturas cerâmicas, tanto dando aulas, como produzindo.  Nos anos 90, organizei um atelier denominado Tessituras, onde havia diversos cursos, além do curso de escultura. Pintura com a Beatriz Balen Susin, desenho com Mariza Carpes, oficina de criação poética com Carpinejar, entre outras atividades. Este atelier funcionou até 2008, quando fui fazer o Mestrado de Pintura em Lisboa. Em 2004, comecei a estudar pintura com Fernando Baril e, nos anos subsequentes, estudei com Vera Wildner, Bina Monteiro, Beatriz Balen Susin.

Em 2007, retomei meus estudos em artes, ao entrar para a Especialização em Poéticas Visuais, pintura, desenho e instalação, na Feevale, Novo Hamburgo, que frequentei por 2 anos.  No ano seguinte, inscrevi-me e fui selecionada para um Mestrado em Pintura em Lisboa, Portugal, onde fiquei por 3 anos.

Meu trabalho artístico, tanto em pintura como em escultura, foi sempre baseado em fotografias. Minhas e de outrem. Meu pai tirava muitas fotos da família e, desde muito cedo, aquilo foi exercendo uma atração em mim. Em alguma época da vida, meu pai organizou um álbum de fotografias com todos nossos ancestrais. Esse álbum ficou muitos anos guardado numa gaveta, até que um dia eu o desmanchei e construí uma árvore genealógica com imagens. Desde então, nunca mais parei. Uso fotos da minha família e fotos que eu compro nos mercados por todo lugar por onde ando. Gosto, compro, e me aproprio transformando aquelas fotos em “familiares”, para facilitar usá-las. Uma estratégia poética.

Sendo assim, posso dizer que meu trabalho tem como tema a memória. Seja familiar, seja social, como a minha exposição recente sobre os mortos do Holocausto, na Galeria Gravura (setembro de 22), seja onírica, como essa que apresento nesta série de pinturas. Fotos inseridas dentro de um universo pictórico, onde imagens se relacionam com a infância e fantasias infantis.

Qual é a tua grande inspiração artística?
Bernardete Conte – Todos os grandes artistas são fonte de admiração e estudos. Não sei se esse termo “inspiração” faz correspondência à minha práxis enquanto artista visual. Todos nós, artistas, sofremos influências de outros artistas. Por isso, visitamos museus, sites e exposições. Mas o processo interno não inclui, ao menos para mim, uma “inspiração”.  Ao ver uma obra que te surpreende e desperta um sentimento de identidade, sim, ela vai ficar incorporada ao teu intelecto, ao teu saber e pode vir a influenciar teu trabalho. Mas são ensinamentos, como eu defino, que absorvemos.

Como eu trabalho a partir e com fotografias, tenho de citar dois movimentos onde a fotografia teve papel fundamental: Dadaísmo e Surrealismo. Em ambos, aparece a prática de associar: metáforas, colagens, agrupamentos, montagem. As fotomontagens do berlinense John Heartfield, de vocação exclusiva de denúncia política, as de Raoul Hausmann, mais plásticas ou as de Max Ernst, mais poéticas. As solarizações de Man Ray, os agrupamentos “muti-mediuns” de Kurt Schwitters ou de Georg Grosz. Mais recentemente, as combine paintings de Robert Rauschenberg, as fotomontagens de David Hockney, as serigrafias de Andy Wharol, as sequências narrativas de Bruce Nauman. As instalações de Christian Boltansky e Gilbert & Georg. O vínculo realista de Chuck Close, a pintura como cópia exata da fotografia de Gerard Richter, a fotografia desvanecida pelo filtro de cor de Rosângela Rennó. A obra da também brasileira Luise Weiss. A obra de Cindy Sherman, reproduzindo pinturas célebres. Joel Witkin, com seus modelos deformados, cenários perversos montados com pedaços de cadáveres e animais. As instalações fotográficas de Marina Abramovic, as instalações de Bill Viola. Todos esses artistas exercem atração e influenciam o meu pensamento como criadora. Há ainda um pintor bielo-russo que muito aprecio, Andrey Zadorin.

Como é teu processo criativo?
Bernardete Conte – Eu tenho diversas séries de trabalhos, com diferentes procedimentos poéticos.

Por exemplo: há uma série em que faço uma cópia da fotografia, e fragmento-a, no Adobe Photoshop, criando uma nova composição. Depois, essa nova composição é impressa e redesenhada com nanquim preto e vermelho. Essas composições conseguidas através do Adobe Photoshop também podem ser projetadas numa tela e pintadas com óleo ou acrílico.

Em outra série, eu desenho a foto na tela, coloco algum animal que não pertence ao contexto da foto, como um rato morto, ou uma cobra enrolada em crianças, e pinto-as, criando um ambiente surreal.

Uma das séries do Holocausto é composta de fotografias encontradas em sites, das pessoas à espera dos trens, em que eu imprimi a foto, e a refotografei cobrindo-as com papéis de seda de antigos álbuns de fotografias. E depois as imprimo digitalmente.

As pinturas que estão apresentadas nesta Coletânea de Artistas Gaúchos, organizada pela Trensurb, são compostas de pintura e colagens.  Seleciono uma foto, imprimo, recorto, e colo sobre a tela dentro de um contexto criado como se fosse um sonho. Um peixe alado, uma galinha voando, uma menina segurando um avião que passa nos céus com um fio amarrado em seu dedo. Imagens oníricas e vinculadas às fantasias infantis.

O que motivou a escolha das artes para a Coletânea?
Bernardete Conte – Escolhi essa série que eu chamei No fio dos sonhos, porque achei que ela é leve, divertida, atinge o espectador no infantil e lúdico que permanece em cada um de nós.

O que elas significam para ti?
Bernardete Conte – Gosto da série, porque começou com um diálogo entre primas, sobre uma das fotos, que acabou sendo a primeira que eu pintei. Três primas, com a casa dos bisavós ao fundo, um avião passando amarrado no dedo de uma das crianças. As outras pinturas são fruto de pesquisa e criação narrativa, mas como ocorrem nos sonhos.

Como vês o projeto Coletânea dos Artistas Gaúchos?
Bernardete Conte – Achei a idéia fantástica. Levar a arte por onde as pessoas passam diariamente não só possibilita apreciar arte, como deve propiciar um alívio das coisas cotidianas. Porque a arte surpreende e isso sempre gera algum tipo de sentimento, de emoção. E desejo que esse projeto tenha continuidade!

O pintor, tal qual o poeta ou narrador, escreve com sua pintura narrativas outras e também as suas?
Bernardete Conte – A narrativa, tal como eu entendo, não está necessariamente presente nas pinturas. Embora ainda haja pinturas que contam histórias sem palavras. A Igreja usou grandes pinturas para narrar fatos bíblicos para um público que não sabia ler. Isso foi interrompido com o Renascimento e foi quase que excluído nos movimentos contemporâneos.  O abstracionismo, o minimalismo e outros movimentos não contém em si o conceito de narrativas.

Mas o meu trabalho, como ele usa a fotografia, traz implícito uma narrativa. Propicia que o espectador crie versões e enredos para a obra apresentada. Dá margem a imaginar coisas.

A figura do espelho tem algum simbolismo que influencia a tua poética visual?
Bernardete Conte – Não há nenhum espelho na minha obra, nem referência a ele. O espelho foi usado em alguns pintores. Vale destacar o espelho usado na pintura: O Mercador Arnolfini e sua esposa, de Jan Van Eick, pintado em 1434, onde ele retrata um espelho que reproduz uma cena que não está visível no universo retratado. Isso criou um enigma pois o espelho retrata o casal de noivos de costas e duas figuras de frente: o próprio pintor e uma testemunha. O que causa uma estranheza porque o espectador vê o pintor pintando a cena que o espectador está a visualizar.

Velasquez utiliza a mesma estratégia pictórica no quadros As meninas, pintado em 1656. Velasquez está a retratar alguém que não é visto no quadro. E apenas um pequeno espelho no fundo do quadro, sugere que as figuras refletidas neste espelho sejam os modelos que Velasquez está pintando. Supostamente, o Rei e a Rainha, já que o ambiente da pintura reproduz uma sala palaciana, com as princesas no local. Mas o espectador frente à obra, no Museu, vê o olhar do pintor a olhar para si, espectador. Isso provoca um atravessamento de tempos históricos, um cruzamento temporal e espacial. Pois inclui o espectador no tempo da pintura, no campo da representação.  Foucault definiu esse fenômeno como a “Inclusão do espectador no campo da representação”, no seu livro chamado As palavras e as coisas.

O espelho, na tua concepção de artista visual, significa um portal - onde as pessoas retratadas pelo pintor interagem com os espectadores transformando-os numa só realidade pictórica na sua representação final?
Bernardete Conte – Não acredito que espectadores possam atravessar esse “portal” ao verem um retrato pintado. A imagem formada em um retrato sempre será uma imagem externa. Até mesmo uma fotografia, a sua própria fotografia, sempre será vista como algo externo e sempre será uma representação. Não tem como fazer a inclusão de si mesmo em algo representado.

Sabemos que o que vemos está fora de nós, que a percepção não está dentro da pessoa, mas sim, sobre os objetos que estão iluminados. Esses objetos só podem ser apreendidos através da luz, através do ponto luminoso fora do olho, ponto de irradiação que inunda o olho. Ao olharmos para um retrato, nosso ou de outrem, podemos ter uma sensação de “apropriação” daquela imagem. Não, fisicamente. Mas uma apropriação imaginária. A pintura passa imaginariamente a “pertencer” ao observador. Mas por que? Esse fenômeno acontece porque é no fundo do olho que o quadro se “pinta”. O espectador não é simplesmente um ponto geometral de onde a perspectiva é apreendida. Isto é: o quadro fica dentro do olho. Ao observar uma pintura, o espectador é tomado por esse sentimento de pertencimento, que é uma vaga sensação de que ele é o “dono” daquela imagem. Assim, a pintura possui um caráter imanente de atrair um olhar de posse, de familiaridade, como se aquele quadro nos pertencesse ou nos possuísse. Mas, de qualquer maneira, isso sempre ficará no plano imaginário.

Tanto quanto eu sei, o único quadro que te inclui no campo da representação, é As meninas de Velasquez, segundo Michel Foucault.


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